segunda-feira, 1 de dezembro de 2008

A poesia de Bonvicino e os seus restos

Rotina

Um mendigo

ao revirar

uma lata de lixo

arrancou o pino

de uma granada

que decepou seu braço

os estilhaços perfuraram

seu olho esquerdo

e destroçaram seus lábios

e dentes, um vira-lata

morreu na hora

Gostava

da vida despedaçada

que o acolhia -

em sua explosiva rotina

.



Viva, em vermelho vivo

no muro

dois mendigos

largados na calçada

dormindo

indiferentes aos carros que passam

e ao alívio

da brisa

que atenua o calor de dezembro

um vira-lata dorme também

tranqüilo

(BONVICINO, Régis. Página órfã. p.63)



Bonvicino no poema Rotina trata, como o próprio título mostra, do cotidiano dos moradores de rua, dos mendigos que estão no mesmo nível dos vira-latas, o homem tratado e colocado no mesmo patamar dos ..."que limpian con la lengua".
Os mendigos, assim como os vira-latas, vivem dos restos, do lixo e das sobras da vida dos outros, os que realmente vivem. Restos que servem para manter a sobrevivência e constituem uma forma de vida frágil, instável e que pode ruir totalmente a qualquer momento. O poeta apresenta um sujeito que tem a sua vida decepada, destroçada e perfurada a cada dia. Para esse homem, o novo dia não é diferente do anterior e também não é diferente do que virá. Uma rotina de mal viver, um eterno viver à margem expresso pela falta de expectativa, pela falta de "ser", pela falta de mudanças e pela estagnação.
A vida, aos poucos despedaçada, irá culminar com a morte, que também não se mostra como sendo algo fora da rotina dessas pessoas, é um fato esperado, indiferente e gradual: morrem um pouco a cada dia. A agressividade desse mundo é representada no poema pela explosão de uma granada, mas a cena, o impacto dos ferimentos e sua intensidade iguala-se a agressividade de viver no mundo moderno.
A indiferença é uma constante nesse mundo urbano, repleto de novas tecnologias, que produz em velocidade assustadora mais e mais contrastes, segrega seres humanos e os reduz a animais. Diante da inevitabilidade e da impotência diante disso tudo, esse homem que dorme na calçada mostra-se indiferente, inatingível. Mas, a qualquer momento, essa tranqüilidade pode ser abalada, uma explosão que faz ceder todas as estruturas. A idéia de Berman, em Tudo que é sólido se desmancha no ar, mostra-nos que a devastação atinge em cheio o homem e sua integridade é permanentemente colocada em segundo plano. Somos empurrados para fora como restos, como lixo, substituídos pelo novo e pelo moderno, empurrados para a Rotina de um mundo que se desestrutura e engole, tolera conviver com essa gente, desde que fique fora do caminho.

Maristela Losekann

domingo, 30 de novembro de 2008

Baque (Fabio Weintraub)

Prefácio
"Apenas as palavras quebram o silêncio, todos os outros sons cessaram. Se eu estivesse silencioso, não ouviria nada. Mas se eu me mantivesse silencioso, os outros sons recomeçariam, aqueles a que as palavras me tornaram surdo, ou que realmente cessaram. Mas estou silencioso, por vezes acontece, não, nunca, nem um segundo. Também choro sem interrupção. É um fluxo incessante de palavras e lágrimas. Sem pausa para reflexão. Mas falo mais baixo, cada ano um pouco mais baixo. Talvez. Também mais lentamente, cada ano um pouco mais lentamente. Talvez. É-me difícil avaliar. Se assim fosse, as pausas seriam mais longas, entre as palavras, as frases, as sílabas, as lágrimas, confundo-as, palavras e lágrimas, as minhas palavras são as minhas lágrimas, os meus olhos a minha boca. E eu deveria ouvir, em cada pequena pausa, se é o silêncio que eu digo quando digo que apenas as palavras o quebram. Mas nada disso, não é assim que acontece, é sempre o mesmo murmúrio, fluindo ininterruptamente, como uma única palavra infindável e, por isso, sem significado, porque é o fim que confere o significado às palavras" (In: BECKETT, S. Textos para Nada).




(Imagens do filme Céu de Suely do diretor Karim Aïnouz de 2006. Nelas Hermila que rifa o próprio corpo.)

A Imprecadora (In: Baque, São Paulo, Ed 34, 2007, p.20-1)

Sou puta, sim, puta e anti-social
mas chupo o dedo sem unha
com boca de pelúcia

Podem vir, que venham
todos os síndicos e o padre viado
fabricante de mendigos
o importador de anões

Podem vir a negranhada
os homens-fêmeas
a indiarada os baianos
judeus nordestinos
o lixo a bosta o esgoto

Passaram antraz na minha boa
na minha gengiva
torturaram meu rosto
minha arcada dentária
seios nádegas olhos nariz
queixo pescoço garganta
cérebro ânus vagina
comeram toda a carne do meu corpo
vodu na boca lábios gengiva

Enfia o farol na buceta
da puta-mãe de vocês
no cu da puta-vaca
da tua mãe-esgoto

Sou eu aqui
dormindo na rua
saia verde camisa preta
Todos precisam de mim

***

Não fiz pesquisa sobre o autor de Baque
Não procurei medida para ler as palavras
Deixei-me impactar

Sem pontos quase sem vírgulas
(, sim, anti-acadêmica)
elas arrombam as portas dos meus olhos míopes


Lembrei-me de Hermila (Suely) à procura do seu céu. O céu que não é dela, mas é o mesmo compartilhado por todos onde...

"Se eu pudesse
fincava um prego no céu
e amarrava a corda
para o teu pescoço"
(Aguardente e Pólvora)


Ela faz rifa do corpo ainda vivo. O corpo é compartilhado por todos porque todos precisam dela. Na verdade, todos precisam de todos quando não se pode mais ser alguém, quando é tirada a possibilidade de entrelaçar os fios de vida que ainda restam e tecer o tecido fértil de uma nova vida. À imprecadora só restam as substâncias, as secreções, o pus que marcam seu corpo: seu simulacro.
A imprecadora prega pregos no céu ou prega súplicas inflamadas ao céu enquanto mira os seios, nádegas, olhos e nariz na boca de todos?
O ritmo da globalização acompanha os movimentos frenéticos dos versos, das ancas e das almas famintas e exiladas até o momento que surge dos lábios do eu-lírico a interrupção, o (des)consolo, o baque: "Sou eu aqui (...) Todos precisam de mim" (grifo meu). Ele, mesmo dilacerado, pelos filhos das puta-mães como ela, (ou seja, todos da mesma prole) aceita quase conformado o ponto de encontro seu com o mundo.

Pósfacio
"Casa da Porca, assim chamam agora a minha casa, fiquei mulher desse Porco-Menino Construtor do Mundo, abro a janela nuns urros compassados, espalho roucos palavrões, giro as órbitas atrás da máscara, não lhes falei que recorto uns ovais feitos de estopa, ajusto-os na cara e desenho sobrancelhas negras, olhos, bocas brancas e abertas? Há máscaras de focinhez e espinhos amarelos (canudos de papelão, pintados pregos), há uma máscara de ferrugem e esterco, a boca cheia de dentes, há uma desastrada lembrança de mim mesma, alguém-mulher querendo compreender a penumbra, a crueldade - quadrados negros pontilhados de negro - alguém - mulher caminhando levíssima entre as gentes, olhando fixamente as caras, detendo-se no aquoso das córneas, no maldito brilho" (HILST, H. A Obscena Senhora D.)

Camila Alexandrini

A morte, o amor, a arte, a eternidade e o absoluto

IVAN JUNQUEIRA


Desde o livro de estréia, Os mortos, a voz de Ivan Junqueira reflete as vozes de outros autores que fazem e fizeram semelhante percurso ontológico. Para ele, “A busca pelo novo não leva a absolutamente nada. O mito do novo não assombra o verdadeiro escritor. Ele sabe que tudo já foi feito – e o que nós estamos fazendo agora é apenas repensar o velho. Tudo já foi feito. Mas a gente tem que acreditar que não foi...”

O que escrevi foi sempre o mesmo
poema, e os mesmos são os dedos que
nele enrolam o novelo
dos muitos eus em destempero
que ali convivem e se odeiam
à sombra de um só parentesco.


A modernidade, na visão de Marshall Berman, é representada por um conjunto de experiências vitais que, nos dias de hoje, o homem tem de si mesmo e dos outros, que é de tempo e espaço e das possibilidades e perigos da vida. Na verdade, segundo ele, um número crescente de pessoas vem caminhando através de um turbilhão de desintegração e mudança, de luta e de contradição, de ambigüidade e de angústia há cerca de quinhentos anos. Mas a modernidade, assim como a esperança, leva o homem à evolução, e ser moderno, para Berman, é fazer parte de um universo em que segundo Marx, “tudo que é sólido se desmancha no ar”.


Para Junqueira, é com Dom Quixote que nasce o romance moderno, ou “o embrião de todos os romances realistas”. Com ele, Cervantes dá início a algo muito maior que apenas um romance psicológico, interior e construído em torno das razões do coração. Com ele, no dizer de Carlos Fuentes: “Começa o mundo moderno”, pois quando Dom Quixote, em 1605, deixa a sua aldeia e parte para o mundo, ele descobre que o mundo não é parecido com o mundo sobre o qual ele andara lendo.
Ainda segundo Junqueira, “Ninguém ignora a profunda e duradoura influência que Dom Quixote exerceu na literatura ocidental. Afinal de contas, Cervantes é o criador do romance moderno, e já se disse, como o fez o escritor norte-americano Lionel Trilling, que “toda prosa de ficção é uma variação sobre o tema de Dom Quixote”, ou seja, o problema da aparência e da realidade. Vamos encontrar semelhante opinião no crítico norte-americano Harry Levin, segundo quem o Dom Quixote é o “protótipo de todos os romances realistas” porque trata da “técnica literária da desilusão sistemática”. E para o ensaísta francês Michel Foucault o Dom Quixote seria o sintoma de um divórcio moderno entre as palavras e as coisas, uma vez que Cervantes procura desesperadamente por uma nova identidade, uma nova semelhança num mundo em que aparentemente nada se parece com o que antes parecia.”


DOM QUIXOTE - poema inédito de Ivan Junqueira
Vai a passo Dom Quixote
em seu magro Rocinante.
Sancho Pança o segue a trote
pela Mancha calcinante.
Tudo é pedra, arbusto seco,
erva má, ermas masetas.
Não se escuta nem o eco
do vento a ranger nas gretas.
O que buscam o fidalgo
e o seu álacre escudeiro?
Peripécias, duelos, algo
que lhes recorde o cordeiro
quando abriu os sete selos
e fez soar as trombetas?
Buscam o quê? O que fê-los
ir tão longe em suas bestas?
Pois esse Alonso Quijano,
ao deixar a sua aldeia,
só buscava – áspero engano –
exumar o que, na teia
de suas tontas leituras,
eram duendes, hierofantes,
castelos, leões, armaduras,
dulcinéias, nigromantes
e uma Espanha onde a justiça,
há tanto um tíbio sol posto,
fosse um bem que só na liça
pudesse ser recomposto.
Mas do triste cavaleiro
era tanto o desatino
que na cuia de um barbeiro
vira o elmo de Mambrino,
nas ovelhas ao relento,
uma tropa de meliantes,
e nos moinhos de vento,
uns desgrenhados gigantes.
Dom Quixote nunca via
o que aos seus pares narrava,
pois que só lia e mais lia,
e ao ler é que se encantava.
E assim do texto as imagens
saltavam – bruscas centelhas –
no amarelo das paisagens,
no ocre encardido das telhas.
Foi quando então, claro e fundo,
percebeu que o que ia vendo
nada tinha com o mundo
sobre o qual andara lendo.

Ilusão e realidade,
heroísmo e covardia,
sensualismo e castidade,
prosa pedestre e poesia
– eis os pólos do conflito
que somente se harmoniza
no humor de um cáustico dito
que nos fustiga e eletriza.
E o que redime o manchego
não é tanto aquilo que ama,
e sim o dom de si mesmo
no amor que doa a uma dama,
sem nenhuma recompensa
que não seja a do fracasso
ou da estrita indiferença
de quem sequer viu-lhe um traço.
De fala mansa e discreta,
que ao calar é que se escuta,
seu percurso é a linha reta
entre o que tomba e o que luta.
Vai a passo Dom Quixote,
ya el pie en el estribo.
A morte agora é seu mote.
Vai a sós. Vai só consigo.


Encontramos neste poema os elementos marcantes dessa nova visão do homem moderno a procura de sua própria identidade e, com isso, se deparando com seus próprios fantasmas. Muito embora Dom Quixote seja um “espírito moderno do passado”, na visão de Berman, devemos visualizar entre as experiências dele e as de Junqueira, uma dialética que realiza um futuro em que o eu e o mundo possam ser novamente criados. Esse o desafio do modernismo: avançar sem perder em peso e em profundidade ao se libertar dos vínculos do passado, pois só haverá liberdade se forem mantidos esses laços que unem as liberdades do passado e os modernos do presente.

Marivone Cechett Sirtoli




terça-feira, 18 de novembro de 2008

O poeta no mundo do nada

O poeta Manuel de Barros na terceira parte do seu Livro sobre nada, que repete o nome do título,escreve um único poema, longo e com um formato diferente, como se fossem várias epígrafes, utilizando-se de lições de sabedoria "É mais fácil fazer da tolice um regalo do que da sensatez."; enunciados explicativos "Sábio é o que adivinha." e vai dessa forma construíndo o seu nada, alicerçado pelo ato de não fazer e de não dizer.
Além disso, coloca a linguagem e a palavra em destaque. A palavra que ganha vida nas mãos do poeta e que serve tão bem para descrever o nada. As palavras que não deixam o poeta sossegado e sempre buscam revelar-se através de sua poesia. Para o poeta, a palavra que serve para expressar a essência desse Eu lírico não é "a palavra acostumada" e sim a palavra que desarruma a linguagem e faz com que o poeta expresse de melhor forma os sentimentos, o que é verdadeiro, os seus desejos mais escondidos.
O artista não consegue libertar-se da palavra, ela o descobre e quase o escraviza. Mas essa escravidão não faz com que o Eu lírico sucumba ao desejo da linguagem, pelo contrário, ele usa a linguagem e a transfigura para apresentar-se através da poesia.
O desejo de Flaubert de escrever sem um tema proposto, escrever sobre o nada é colocado no início do livro no "Pretexto", esse título pode ser pensado também como sendo um pretexto de Manuel de Barros que também optou por esse modelo anormal de expressão.
A constante presença do nada impulsiona o poeta para a busca do auto-conhecimento e o prepara para revelar o mundo através das palavras e, então, ao falar sobre o nada acaba falando também do Eu poético. O artista quer ser vadio, uma vadiagem permeada pela liberdade, uma liberdade para fazer nada, uma liberdade que permita fugir da obrigatoriedade de dizer, de fazer algo diferente, único, uma liberdade que permita criar de forma livre, sem ter a obrigação de ser útil. O nada como um instrumento que liberta para criar a verdadeira poesia.
BARROS, Manuel. Livro sobre nada. Rio de Janeiro: Editora Record, 2002, p.67.

Maristela Losekann

domingo, 16 de novembro de 2008

Manoel de Barros



Pretexto

Nesta abertura instigante e paradoxal, que é uma pré-apresentação do que virá em seguida, o poeta explica o que o nada é para Flaubert com o intuito de sinalizar ao seu leitor que não se deixe enredar por esta armadilha de considerar o nada que não tem quase tema, que se sustenta só no estilo que é o nada de Flaubert, com o nada que ele, Manoel de Barros persegue e que é coisa nenhuma por escrito, é usar as palavras para fazer brinquedos e coisas desúteis: “O nada mesmo. Tudo que use o abandono por dentro e por fora”.
Precisamos ter consciência que o terreno que estamos pisando é o da poesia, em que o eu lírico organiza de modo muito especial os signos, subvertendo os elementos lingüísticos, isto é, um terreno de transgressão verbal e sem limites. Manoel de Barros se apropria desta subversão e vai além, não se contentando com o signo meramente representativo para materializar o nada por meio da linguagem, e o alarme, para ele, pode significar a existência da palavra contrapondo o silêncio – silêncio aqui como significado de ausência desta palavra – como a palavra que não foi dita.
[...] É coisa nenhuma por escrito: um alarme para o silêncio, um abridor de amanhecer, pessoa apropriada para pedras, o parafuso de veludo, [...].
Lúcia Castello Branco, na apresentação do livro, nos alerta sobre as epígrafes, as citações, as referências, as notas de rodapé com que o eu lírico nos oferece pistas, mas que, segundo ela, são falsas pistas que se seguidas nos levarão ao movimento de uma segunda mão, “que escreve nos espaços paratextuais, o desnome desse sujeito poético desacontecido”. O uso que o poeta se vale deste prefixo des é constante e caracteriza o paradoxo ilógico em que sabemos, está o seu nada que é tudo, como podem atestar os dois primeiros versos do livro após o Pretexto: “As coisas tinham para nós uma desutilidade poética. Nos fundos do quintal era muito riquíssimo o nosso dessaber”.

Desejar ser
O maior apetite do homem é
desejar ser. Se os olhos vêem
com amor o que não é, tem ser.
Padre Antônio Vieira
em PAIXÕES HUMANAS

1.
Com pedaços de mim eu monto um ser atônito.

6.
Carrego meus primórdios num andor.
Minha voz tem um vício de fontes.
Eu queria avançar para o começo.
Chegar ao criançamento das palavras.
Lá onde elas ainda urinam na perna.
Antes mesmo que sejam modeladas pelas mãos.
Quando a criança garatuja o verbo para falar o que
não tem.
Pegar no estame do som.
Ser a voz de um lagarto escurecido.
Abrir um descortínio para o arcano.



ANÁLISE

O maior apetite do homem é
desejar ser. Se os olhos vêem
com amor o que não é, tem ser.
Padre Antônio Vieira
em PAIXÕES HUMANAS

Com esta epígrafe, o poeta nos apresenta o homem como alguém capaz de enxergar, não o que ele é, mas o que ele não é, indo além das suas necessidades físicas. Para isso, o seu olhar tem que ser um olhar com amor o que ele não é, ou seja, travestido de poética, pois a poesia é exatamente e até onde ela consegue não ser – fundamento este que marca o signo poético e o traveste de profunda humanidade – assim, o poeta considera que o homem é poesia, ou que a poesia é propriamente humana.

1.
Com pedaços de mim eu monto um ser atônito.
O que indica, entre outras leituras, uma possível experimentação da perplexidade, do espanto, daquilo capaz de nos deixar atônitos. É uma advertência, uma informação que devemos levar até o fim deste tópico.

6.
Carrego meus primórdios num andor.
(Faz referência a era da não representação)
Minha voz tem um vício de fontes.
(O eu poético queria ter a possibilidade de se expressar através dos sentidos)
Eu queria avançar para o começo.
(Voltar ao princípio – aos primórdios - seria avançar, aproximar-se da palavra pura)
Chegar ao criançamento das palavras.
Lá onde elas ainda urinam na perna.
(A infância para M. de Barros tem um sentido de inocência, de busca pela palavra - eis o ponto máximo da relação com o universo infantil: a criança é incapaz de entender as palavras como representações do mundo, daí sua facilidade em delas fazer “brinquedos”)
Antes mesmo que sejam modeladas pelas mãos.
(Antes que a palavra seja vinculada à representação, um tempo pré-significante. Era um tempo inequívoco e natural)
Quando a criança garatuja o verbo para falar o que
não tem.
Pegar no estame do som.
Ser a voz de um lagarto escurecido.
Abrir um descortínio para o arcano.
(É o retorno às origens, novamente o reencontro com o universo infantil ou mesmo dos homens primitivos. A eterna busca do poeta marcada pela impossibilidade de conciliação entre a palavra e o nada que ele quer dizer. Isso seria uma irrealização, mas o poeta nos abre uma brecha onde mostra o que não se representa através do olhar amoroso dirigido ao não-ser, como queria Vieira)

***

14.
O que não sei fazer desmancho em frases

Eu fiz o nada aparecer

(Represente que o homem é um poço escuro
Aqui de cima não se vê nada
Mas quando se chega ao fundo do poço já se pode ver
o nada)

Perder o nada é um empobrecimento.

BARROS, Manoel de. Livro sobre Nada. Rio de Janeiro: Record, 1996. p.63.

(...) Percebo agora que eu escrevo sobre nada. De onde vem o que não sabemos? Porque no fundo nunca sabemos nada. E assim continuamos. E, de fato, nunca nos faz falta o quê não sabemos. Vivemos sem nada a vida toda e o que temos é parcela do nada. Não sei exatamente porque escrevo sobre isso. Talvez eu esteja escrevendo sobre o nada. E o nada é o sentido não declarado das coisas. Eu sei escrever apenas brigando com o sentido claro. Mas, ao mesmo tempo, o que mais tenho procurado é fazer da letra um lugar sem fronteiras. O sentido é aprisionado não por mim. Omitir o sentido claro das coisas não é tirar o sentido das coisas. É dar a elas outro sentido: de luta, de intempérie. E sempre foi assim que escrevi. Brigando não com as pessoas, os sentimentos, a vida. Mas com o sentido claro das coisas. Não se trata de mistério, mas de mim deslocada da necessidade de ser entendida. (...)


(E talvez seja essa a imensidão íntima dita por Bachelard no meu entendimento. É o nada desmembrado em frases sem afrouxar os laços com a imensidão do ser).

Contribuições teóricas acerca do Nada que podem ou não contribuir ao entendimento do Nada que existe em nós

Sartre
“Concluímos então que, se a negação não existisse, nenhuma pergunta poderia ser formulada, sequer, em particular, a do ser. Mas essa negação, vista mais de perto, remeteu-nos ao Nada como sua origem e fundamento: para que haja negação no mundo e, por conseguinte, possamos interrogar sobre o Ser, é necessário que o Nada se dê de alguma maneira” (In: O ser e o nada”, p 64).

Camus
“Entre a certeza que tenho da minha existência e o conteúdo que tento dar a essa segurança, o fosso jamais será preenchido. Serei para sempre um estranho em mim mesmo” (In: Mito de Sísifo, 1989:38). “O fracasso, além de toda explicação e de toda interpretação possível, não nos mostra o nada, mas o ser da transcendência (...) Nada, nesse raciocínio, nos leva à lógica” (idem, 1989:51).

(Camila e Marivone)

segunda-feira, 20 de outubro de 2008

Um encontro elevado

Adélia Prado, em seu poema Biografia do Poeta, através de algumas lembranças da infância nos tráz uma imagem de sua casa, um abrigo, protegido e rodeado por duas oliveiras. A cena pela sua beleza remete ao início de um amor, o amor por Jonathan que é a encarnação de Deus. À sombra das oliveiras Jesus pregava e orava, e a casa da poetisa também fica à sombra das oliveiras, aproximando, ou melhor, transformando a casa em um espaço sagrado.
Na poesia Canto de Ofício de Mariana Ianelli, o próprio título cria a idéia de oração, o espaço de oração e de reflexão/introspecção é o quarto à meia luz, um lugar íntimo, lugar para agradecer os prazeres e tudo mais que o mundo nos propicia. A poetisa deixa claro que não sabe bem para quem agradece, apenas dirige o seu agradecimento. O amor supremo não tem um rosto, segundo Bauman ele surge inesperadamente, não há como escolher em que face ele irá se manifestar. Há sempre uma incerteza que é própria do amor.
O amor, a cada dia, é diferente, a "noite inaugural" e "a derradeira", ao mesmo tempo que inicia, pode estar chegando ao fim; pode ser a primeira, como pode ser a última noite do amor. O amor não tem prazo, validade, pode acabar a qualquer momento, é efêmero.
Por outro lado, Adélia Prado em seu poema demonstra saber quem é o objeto do seu amor. A dualidade - duas da tarde, duas árvores - reforça a idéia de que Jonathan representa a carne, o homem e Jesus/Deus representa o santo, dois, mas ao mesmo tempo, um. A dualidade, dessa forma, gera medo e dúvida diante de algo misterioso, inexplicável.
A pregação realizada por Jesus aparece nos dois poemas nos trechos: "Alto de um monte" e "Destes troncos que vês, Deus falou à Moisés". Ianelli mostra um "Eu Poético" que, ao mesmo tempo que ora e ouve as pregações, demonstra sentimentos contrastantes, como por exemplo, na quinta estrofe em, que ela crê, resiste e depois descrê, mas continua a orar.
Na hora do café, duas horas, o "Eu poético" de Adélia, através de um evento do cotidiano, abandona o devaneio e retorna à realidade, volta a ser criança e brinca com o irmão. E, da mesma maneira que Ianelli, demonstra também sentimentos contrastantes, mas com relação ao amor. Pergunta-se como podemos amar, transformar em amor uma coisa que nos provoca medo e horror. Esse estranhamento, para ela, não faz parte do homem, ser que está acostumado com receitas prontas, que imita e não se permite criar, continua sendo convencional e centrado na razão. O poeta, por outro lado, é alguém que foge das convenções, que olha para o que ninguém percebe e inventa, não se humilhando, não cedendo à razão:
"Borboletinhas, computadores
fios dágua com peixes
cabos telegráficos sob o mar."
O poeta ao criar consegue ver a beleza da criação, desvenda o belo, está aberto à expectativa do novo e não se detém naquilo que todo mundo vê. Na poesia de Ianelli, somos possuídos pelo milagre da oração, da mesma forma que somos possuídos pelo poema. O poema é um ato de elevação como a oração, é comparável a um milagre, um breve momento onde não usamos todas as palavras, há ainda muito para dizer. Fazer poesia é uma bênção, pois apesar do "olho cego" o poeta tem uma visão que ninguém mais tem, não há aprendizado possível. A criação, assim como o amor, é um ato sem controle, não existe escolha e racionalização, é um aborto, o poeta expulsa o poema. Não há planejamento para o amor assim como para a poesia, é um momento único e inesperado, no qual a experiência não é cumulativa, é sempre algo novo, mágico.

terça-feira, 7 de outubro de 2008

Kami Quase


Andar e pensar um pouco,
que só sei pensar andando.
Três passos, e minhas pernas
já estão pensando.

Aonde vão dar estes passos?
Acima, abaixo?
Além? Ou acaso?
se desfazem ao mínimo vento
sem deixar nenhum traço?


Operação de Vista

De uma noite, vim.
Para uma noite, vamos,
uma rosa de Guimarães
nos ramos de Graciliano.

Finnegans Wake à direita,
un coup des dés à esquerda,
que coisa pode ser feita
que não seja pura perda?


saber é pouco
como é que a água do mar
entra dentro do coco?

(Poemas de Paulo Leminski retirados do livro La Vie en Close)

Fica claro que, nos poemas acima, a idéia é persistente e sempre acompanha o homem na multidão. Homem que apreende as sutilezas e as transforma em matéria e onde qualquer esforço intelectual pode significar muito ou significar quase nada.
O eu-lírico compreende sua insignificância e sabe que o destino de todos é o mesmo – vir do nada e voltar ao nada. Vê-se enredado por influências e pela impotência de criar uma grande obra.
Pode-se, ainda, produzir algo inovador?
Somente uma volta ao passado justificaria o fazer poético apontando novas direções, além de legitimar a condição do eu-lírico e do próprio poeta como “homem do povo”. O estado-poético independe de teorizações. Ele está presente nos acontecimentos mais triviais que transformam o poema.
Um turbilhão de pensamentos, de passos e de pessoas. Frágil e precária como a vida moderna – assim é a poesia do GRANDE Leminski.


Roberta Triaca