"Apenas as palavras quebram o silêncio, todos os outros sons cessaram. Se eu estivesse silencioso, não ouviria nada. Mas se eu me mantivesse silencioso, os outros sons recomeçariam, aqueles a que as palavras me tornaram surdo, ou que realmente cessaram. Mas estou silencioso, por vezes acontece, não, nunca, nem um segundo. Também choro sem interrupção. É um fluxo incessante de palavras e lágrimas. Sem pausa para reflexão. Mas falo mais baixo, cada ano um pouco mais baixo. Talvez. Também mais lentamente, cada ano um pouco mais lentamente. Talvez. É-me difícil avaliar. Se assim fosse, as pausas seriam mais longas, entre as palavras, as frases, as sílabas, as lágrimas, confundo-as, palavras e lágrimas, as minhas palavras são as minhas lágrimas, os meus olhos a minha boca. E eu deveria ouvir, em cada pequena pausa, se é o silêncio que eu digo quando digo que apenas as palavras o quebram. Mas nada disso, não é assim que acontece, é sempre o mesmo murmúrio, fluindo ininterruptamente, como uma única palavra infindável e, por isso, sem significado, porque é o fim que confere o significado às palavras" (In: BECKETT, S. Textos para Nada).
A Imprecadora (In: Baque, São Paulo, Ed 34, 2007, p.20-1)
Sou puta, sim, puta e anti-social
mas chupo o dedo sem unha
com boca de pelúcia
Podem vir, que venham
todos os síndicos e o padre viado
fabricante de mendigos
o importador de anões
Podem vir a negranhada
os homens-fêmeas
a indiarada os baianos
judeus nordestinos
o lixo a bosta o esgoto
Passaram antraz na minha boa
na minha gengiva
torturaram meu rosto
minha arcada dentária
seios nádegas olhos nariz
queixo pescoço garganta
cérebro ânus vagina
comeram toda a carne do meu corpo
vodu na boca lábios gengiva
Enfia o farol na buceta
da puta-mãe de vocês
no cu da puta-vaca
da tua mãe-esgoto
Sou eu aqui
dormindo na rua
saia verde camisa preta
Todos precisam de mim
(Imagens do filme Céu de Suely do diretor Karim Aïnouz de 2006. Nelas Hermila que rifa o próprio corpo.)
Sou puta, sim, puta e anti-social
mas chupo o dedo sem unha
com boca de pelúcia
Podem vir, que venham
todos os síndicos e o padre viado
fabricante de mendigos
o importador de anões
Podem vir a negranhada
os homens-fêmeas
a indiarada os baianos
judeus nordestinos
o lixo a bosta o esgoto
Passaram antraz na minha boa
na minha gengiva
torturaram meu rosto
minha arcada dentária
seios nádegas olhos nariz
queixo pescoço garganta
cérebro ânus vagina
comeram toda a carne do meu corpo
vodu na boca lábios gengiva
Enfia o farol na buceta
da puta-mãe de vocês
no cu da puta-vaca
da tua mãe-esgoto
Sou eu aqui
dormindo na rua
saia verde camisa preta
Todos precisam de mim
***
Não fiz pesquisa sobre o autor de Baque
Não procurei medida para ler as palavras
Deixei-me impactar
Sem pontos quase sem vírgulas
(, sim, anti-acadêmica)
elas arrombam as portas dos meus olhos míopes
Lembrei-me de Hermila (Suely) à procura do seu céu. O céu que não é dela, mas é o mesmo compartilhado por todos onde...
"Se eu pudesse
fincava um prego no céu
e amarrava a corda
para o teu pescoço"
(Aguardente e Pólvora)
Ela faz rifa do corpo ainda vivo. O corpo é compartilhado por todos porque todos precisam dela. Na verdade, todos precisam de todos quando não se pode mais ser alguém, quando é tirada a possibilidade de entrelaçar os fios de vida que ainda restam e tecer o tecido fértil de uma nova vida. À imprecadora só restam as substâncias, as secreções, o pus que marcam seu corpo: seu simulacro.
A imprecadora prega pregos no céu ou prega súplicas inflamadas ao céu enquanto mira os seios, nádegas, olhos e nariz na boca de todos?
O ritmo da globalização acompanha os movimentos frenéticos dos versos, das ancas e das almas famintas e exiladas até o momento que surge dos lábios do eu-lírico a interrupção, o (des)consolo, o baque: "Sou eu aqui (...) Todos precisam de mim" (grifo meu). Ele, mesmo dilacerado, pelos filhos das puta-mães como ela, (ou seja, todos da mesma prole) aceita quase conformado o ponto de encontro seu com o mundo.
Pósfacio
"Casa da Porca, assim chamam agora a minha casa, fiquei mulher desse Porco-Menino Construtor do Mundo, abro a janela nuns urros compassados, espalho roucos palavrões, giro as órbitas atrás da máscara, não lhes falei que recorto uns ovais feitos de estopa, ajusto-os na cara e desenho sobrancelhas negras, olhos, bocas brancas e abertas? Há máscaras de focinhez e espinhos amarelos (canudos de papelão, pintados pregos), há uma máscara de ferrugem e esterco, a boca cheia de dentes, há uma desastrada lembrança de mim mesma, alguém-mulher querendo compreender a penumbra, a crueldade - quadrados negros pontilhados de negro - alguém - mulher caminhando levíssima entre as gentes, olhando fixamente as caras, detendo-se no aquoso das córneas, no maldito brilho" (HILST, H. A Obscena Senhora D.)
Não fiz pesquisa sobre o autor de Baque
Não procurei medida para ler as palavras
Deixei-me impactar
Sem pontos quase sem vírgulas
(, sim, anti-acadêmica)
elas arrombam as portas dos meus olhos míopes
Lembrei-me de Hermila (Suely) à procura do seu céu. O céu que não é dela, mas é o mesmo compartilhado por todos onde...
"Se eu pudesse
fincava um prego no céu
e amarrava a corda
para o teu pescoço"
(Aguardente e Pólvora)
Ela faz rifa do corpo ainda vivo. O corpo é compartilhado por todos porque todos precisam dela. Na verdade, todos precisam de todos quando não se pode mais ser alguém, quando é tirada a possibilidade de entrelaçar os fios de vida que ainda restam e tecer o tecido fértil de uma nova vida. À imprecadora só restam as substâncias, as secreções, o pus que marcam seu corpo: seu simulacro.
A imprecadora prega pregos no céu ou prega súplicas inflamadas ao céu enquanto mira os seios, nádegas, olhos e nariz na boca de todos?
O ritmo da globalização acompanha os movimentos frenéticos dos versos, das ancas e das almas famintas e exiladas até o momento que surge dos lábios do eu-lírico a interrupção, o (des)consolo, o baque: "Sou eu aqui (...) Todos precisam de mim" (grifo meu). Ele, mesmo dilacerado, pelos filhos das puta-mães como ela, (ou seja, todos da mesma prole) aceita quase conformado o ponto de encontro seu com o mundo.
Pósfacio
"Casa da Porca, assim chamam agora a minha casa, fiquei mulher desse Porco-Menino Construtor do Mundo, abro a janela nuns urros compassados, espalho roucos palavrões, giro as órbitas atrás da máscara, não lhes falei que recorto uns ovais feitos de estopa, ajusto-os na cara e desenho sobrancelhas negras, olhos, bocas brancas e abertas? Há máscaras de focinhez e espinhos amarelos (canudos de papelão, pintados pregos), há uma máscara de ferrugem e esterco, a boca cheia de dentes, há uma desastrada lembrança de mim mesma, alguém-mulher querendo compreender a penumbra, a crueldade - quadrados negros pontilhados de negro - alguém - mulher caminhando levíssima entre as gentes, olhando fixamente as caras, detendo-se no aquoso das córneas, no maldito brilho" (HILST, H. A Obscena Senhora D.)
Camila Alexandrini
Um comentário:
Fiz a leitura do texto e, brevíssimo, realizarei comentários sobre a análise apresentada.
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