domingo, 30 de novembro de 2008

Baque (Fabio Weintraub)

Prefácio
"Apenas as palavras quebram o silêncio, todos os outros sons cessaram. Se eu estivesse silencioso, não ouviria nada. Mas se eu me mantivesse silencioso, os outros sons recomeçariam, aqueles a que as palavras me tornaram surdo, ou que realmente cessaram. Mas estou silencioso, por vezes acontece, não, nunca, nem um segundo. Também choro sem interrupção. É um fluxo incessante de palavras e lágrimas. Sem pausa para reflexão. Mas falo mais baixo, cada ano um pouco mais baixo. Talvez. Também mais lentamente, cada ano um pouco mais lentamente. Talvez. É-me difícil avaliar. Se assim fosse, as pausas seriam mais longas, entre as palavras, as frases, as sílabas, as lágrimas, confundo-as, palavras e lágrimas, as minhas palavras são as minhas lágrimas, os meus olhos a minha boca. E eu deveria ouvir, em cada pequena pausa, se é o silêncio que eu digo quando digo que apenas as palavras o quebram. Mas nada disso, não é assim que acontece, é sempre o mesmo murmúrio, fluindo ininterruptamente, como uma única palavra infindável e, por isso, sem significado, porque é o fim que confere o significado às palavras" (In: BECKETT, S. Textos para Nada).




(Imagens do filme Céu de Suely do diretor Karim Aïnouz de 2006. Nelas Hermila que rifa o próprio corpo.)

A Imprecadora (In: Baque, São Paulo, Ed 34, 2007, p.20-1)

Sou puta, sim, puta e anti-social
mas chupo o dedo sem unha
com boca de pelúcia

Podem vir, que venham
todos os síndicos e o padre viado
fabricante de mendigos
o importador de anões

Podem vir a negranhada
os homens-fêmeas
a indiarada os baianos
judeus nordestinos
o lixo a bosta o esgoto

Passaram antraz na minha boa
na minha gengiva
torturaram meu rosto
minha arcada dentária
seios nádegas olhos nariz
queixo pescoço garganta
cérebro ânus vagina
comeram toda a carne do meu corpo
vodu na boca lábios gengiva

Enfia o farol na buceta
da puta-mãe de vocês
no cu da puta-vaca
da tua mãe-esgoto

Sou eu aqui
dormindo na rua
saia verde camisa preta
Todos precisam de mim

***

Não fiz pesquisa sobre o autor de Baque
Não procurei medida para ler as palavras
Deixei-me impactar

Sem pontos quase sem vírgulas
(, sim, anti-acadêmica)
elas arrombam as portas dos meus olhos míopes


Lembrei-me de Hermila (Suely) à procura do seu céu. O céu que não é dela, mas é o mesmo compartilhado por todos onde...

"Se eu pudesse
fincava um prego no céu
e amarrava a corda
para o teu pescoço"
(Aguardente e Pólvora)


Ela faz rifa do corpo ainda vivo. O corpo é compartilhado por todos porque todos precisam dela. Na verdade, todos precisam de todos quando não se pode mais ser alguém, quando é tirada a possibilidade de entrelaçar os fios de vida que ainda restam e tecer o tecido fértil de uma nova vida. À imprecadora só restam as substâncias, as secreções, o pus que marcam seu corpo: seu simulacro.
A imprecadora prega pregos no céu ou prega súplicas inflamadas ao céu enquanto mira os seios, nádegas, olhos e nariz na boca de todos?
O ritmo da globalização acompanha os movimentos frenéticos dos versos, das ancas e das almas famintas e exiladas até o momento que surge dos lábios do eu-lírico a interrupção, o (des)consolo, o baque: "Sou eu aqui (...) Todos precisam de mim" (grifo meu). Ele, mesmo dilacerado, pelos filhos das puta-mães como ela, (ou seja, todos da mesma prole) aceita quase conformado o ponto de encontro seu com o mundo.

Pósfacio
"Casa da Porca, assim chamam agora a minha casa, fiquei mulher desse Porco-Menino Construtor do Mundo, abro a janela nuns urros compassados, espalho roucos palavrões, giro as órbitas atrás da máscara, não lhes falei que recorto uns ovais feitos de estopa, ajusto-os na cara e desenho sobrancelhas negras, olhos, bocas brancas e abertas? Há máscaras de focinhez e espinhos amarelos (canudos de papelão, pintados pregos), há uma máscara de ferrugem e esterco, a boca cheia de dentes, há uma desastrada lembrança de mim mesma, alguém-mulher querendo compreender a penumbra, a crueldade - quadrados negros pontilhados de negro - alguém - mulher caminhando levíssima entre as gentes, olhando fixamente as caras, detendo-se no aquoso das córneas, no maldito brilho" (HILST, H. A Obscena Senhora D.)

Camila Alexandrini

Um comentário:

Unknown disse...

Fiz a leitura do texto e, brevíssimo, realizarei comentários sobre a análise apresentada.