IVAN JUNQUEIRA
O que escrevi foi sempre o mesmo
poema, e os mesmos são os dedos que
nele enrolam o novelo
dos muitos eus em destempero
que ali convivem e se odeiam
à sombra de um só parentesco.
A modernidade, na visão de Marshall Berman, é representada por um conjunto de experiências vitais que, nos dias de hoje, o homem tem de si mesmo e dos outros, que é de tempo e espaço e das possibilidades e perigos da vida. Na verdade, segundo ele, um número crescente de pessoas vem caminhando através de um turbilhão de desintegração e mudança, de luta e de contradição, de ambigüidade e de angústia há cerca de quinhentos anos. Mas a modernidade, assim como a esperança, leva o homem à evolução, e ser moderno, para Berman, é fazer parte de um universo em que segundo Marx, “tudo que é sólido se desmancha no ar”.
Para Junqueira, é com Dom Quixote que nasce o romance moderno, ou “o embrião de todos os romances realistas”. Com ele, Cervantes dá início a algo muito maior que apenas um romance psicológico, interior e construído em torno das razões do coração. Com ele, no dizer de Carlos Fuentes: “Começa o mundo moderno”, pois quando Dom Quixote, em 1605, deixa a sua aldeia e parte para o mundo, ele descobre que o mundo não é parecido com o mundo sobre o qual ele andara lendo.
Ainda segundo Junqueira, “Ninguém ignora a profunda e duradoura influência que Dom Quixote exerceu na literatura ocidental. Afinal de contas, Cervantes é o criador do romance moderno, e já se disse, como o fez o escritor norte-americano Lionel Trilling, que “toda prosa de ficção é uma variação sobre o tema de Dom Quixote”, ou seja, o problema da aparência e da realidade. Vamos encontrar semelhante opinião no crítico norte-americano Harry Levin, segundo quem o Dom Quixote é o “protótipo de todos os romances realistas” porque trata da “técnica literária da desilusão sistemática”. E para o ensaísta francês Michel Foucault o Dom Quixote seria o sintoma de um divórcio moderno entre as palavras e as coisas, uma vez que Cervantes procura desesperadamente por uma nova identidade, uma nova semelhança num mundo em que aparentemente nada se parece com o que antes parecia.”
DOM QUIXOTE - poema inédito de Ivan Junqueira
Vai a passo Dom Quixote
em seu magro Rocinante.
Sancho Pança o segue a trote
pela Mancha calcinante.
Tudo é pedra, arbusto seco,
erva má, ermas masetas.
Não se escuta nem o eco
do vento a ranger nas gretas.
O que buscam o fidalgo
e o seu álacre escudeiro?
Peripécias, duelos, algo
que lhes recorde o cordeiro
quando abriu os sete selos
e fez soar as trombetas?
Buscam o quê? O que fê-los
ir tão longe em suas bestas?
Pois esse Alonso Quijano,
ao deixar a sua aldeia,
só buscava – áspero engano –
exumar o que, na teia
de suas tontas leituras,
eram duendes, hierofantes,
castelos, leões, armaduras,
dulcinéias, nigromantes
e uma Espanha onde a justiça,
há tanto um tíbio sol posto,
fosse um bem que só na liça
pudesse ser recomposto.
Mas do triste cavaleiro
era tanto o desatino
que na cuia de um barbeiro
vira o elmo de Mambrino,
nas ovelhas ao relento,
uma tropa de meliantes,
e nos moinhos de vento,
uns desgrenhados gigantes.
Dom Quixote nunca via
o que aos seus pares narrava,
pois que só lia e mais lia,
e ao ler é que se encantava.
E assim do texto as imagens
saltavam – bruscas centelhas –
no amarelo das paisagens,
no ocre encardido das telhas.
Foi quando então, claro e fundo,
percebeu que o que ia vendo
nada tinha com o mundo
sobre o qual andara lendo.
Ilusão e realidade,
heroísmo e covardia,
sensualismo e castidade,
prosa pedestre e poesia
– eis os pólos do conflito
que somente se harmoniza
no humor de um cáustico dito
que nos fustiga e eletriza.
E o que redime o manchego
não é tanto aquilo que ama,
e sim o dom de si mesmo
no amor que doa a uma dama,
sem nenhuma recompensa
que não seja a do fracasso
ou da estrita indiferença
de quem sequer viu-lhe um traço.
De fala mansa e discreta,
que ao calar é que se escuta,
seu percurso é a linha reta
entre o que tomba e o que luta.
Vai a passo Dom Quixote,
ya el pie en el estribo.
A morte agora é seu mote.
Vai a sós. Vai só consigo.
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