domingo, 30 de novembro de 2008

A morte, o amor, a arte, a eternidade e o absoluto

IVAN JUNQUEIRA


Desde o livro de estréia, Os mortos, a voz de Ivan Junqueira reflete as vozes de outros autores que fazem e fizeram semelhante percurso ontológico. Para ele, “A busca pelo novo não leva a absolutamente nada. O mito do novo não assombra o verdadeiro escritor. Ele sabe que tudo já foi feito – e o que nós estamos fazendo agora é apenas repensar o velho. Tudo já foi feito. Mas a gente tem que acreditar que não foi...”

O que escrevi foi sempre o mesmo
poema, e os mesmos são os dedos que
nele enrolam o novelo
dos muitos eus em destempero
que ali convivem e se odeiam
à sombra de um só parentesco.


A modernidade, na visão de Marshall Berman, é representada por um conjunto de experiências vitais que, nos dias de hoje, o homem tem de si mesmo e dos outros, que é de tempo e espaço e das possibilidades e perigos da vida. Na verdade, segundo ele, um número crescente de pessoas vem caminhando através de um turbilhão de desintegração e mudança, de luta e de contradição, de ambigüidade e de angústia há cerca de quinhentos anos. Mas a modernidade, assim como a esperança, leva o homem à evolução, e ser moderno, para Berman, é fazer parte de um universo em que segundo Marx, “tudo que é sólido se desmancha no ar”.


Para Junqueira, é com Dom Quixote que nasce o romance moderno, ou “o embrião de todos os romances realistas”. Com ele, Cervantes dá início a algo muito maior que apenas um romance psicológico, interior e construído em torno das razões do coração. Com ele, no dizer de Carlos Fuentes: “Começa o mundo moderno”, pois quando Dom Quixote, em 1605, deixa a sua aldeia e parte para o mundo, ele descobre que o mundo não é parecido com o mundo sobre o qual ele andara lendo.
Ainda segundo Junqueira, “Ninguém ignora a profunda e duradoura influência que Dom Quixote exerceu na literatura ocidental. Afinal de contas, Cervantes é o criador do romance moderno, e já se disse, como o fez o escritor norte-americano Lionel Trilling, que “toda prosa de ficção é uma variação sobre o tema de Dom Quixote”, ou seja, o problema da aparência e da realidade. Vamos encontrar semelhante opinião no crítico norte-americano Harry Levin, segundo quem o Dom Quixote é o “protótipo de todos os romances realistas” porque trata da “técnica literária da desilusão sistemática”. E para o ensaísta francês Michel Foucault o Dom Quixote seria o sintoma de um divórcio moderno entre as palavras e as coisas, uma vez que Cervantes procura desesperadamente por uma nova identidade, uma nova semelhança num mundo em que aparentemente nada se parece com o que antes parecia.”


DOM QUIXOTE - poema inédito de Ivan Junqueira
Vai a passo Dom Quixote
em seu magro Rocinante.
Sancho Pança o segue a trote
pela Mancha calcinante.
Tudo é pedra, arbusto seco,
erva má, ermas masetas.
Não se escuta nem o eco
do vento a ranger nas gretas.
O que buscam o fidalgo
e o seu álacre escudeiro?
Peripécias, duelos, algo
que lhes recorde o cordeiro
quando abriu os sete selos
e fez soar as trombetas?
Buscam o quê? O que fê-los
ir tão longe em suas bestas?
Pois esse Alonso Quijano,
ao deixar a sua aldeia,
só buscava – áspero engano –
exumar o que, na teia
de suas tontas leituras,
eram duendes, hierofantes,
castelos, leões, armaduras,
dulcinéias, nigromantes
e uma Espanha onde a justiça,
há tanto um tíbio sol posto,
fosse um bem que só na liça
pudesse ser recomposto.
Mas do triste cavaleiro
era tanto o desatino
que na cuia de um barbeiro
vira o elmo de Mambrino,
nas ovelhas ao relento,
uma tropa de meliantes,
e nos moinhos de vento,
uns desgrenhados gigantes.
Dom Quixote nunca via
o que aos seus pares narrava,
pois que só lia e mais lia,
e ao ler é que se encantava.
E assim do texto as imagens
saltavam – bruscas centelhas –
no amarelo das paisagens,
no ocre encardido das telhas.
Foi quando então, claro e fundo,
percebeu que o que ia vendo
nada tinha com o mundo
sobre o qual andara lendo.

Ilusão e realidade,
heroísmo e covardia,
sensualismo e castidade,
prosa pedestre e poesia
– eis os pólos do conflito
que somente se harmoniza
no humor de um cáustico dito
que nos fustiga e eletriza.
E o que redime o manchego
não é tanto aquilo que ama,
e sim o dom de si mesmo
no amor que doa a uma dama,
sem nenhuma recompensa
que não seja a do fracasso
ou da estrita indiferença
de quem sequer viu-lhe um traço.
De fala mansa e discreta,
que ao calar é que se escuta,
seu percurso é a linha reta
entre o que tomba e o que luta.
Vai a passo Dom Quixote,
ya el pie en el estribo.
A morte agora é seu mote.
Vai a sós. Vai só consigo.


Encontramos neste poema os elementos marcantes dessa nova visão do homem moderno a procura de sua própria identidade e, com isso, se deparando com seus próprios fantasmas. Muito embora Dom Quixote seja um “espírito moderno do passado”, na visão de Berman, devemos visualizar entre as experiências dele e as de Junqueira, uma dialética que realiza um futuro em que o eu e o mundo possam ser novamente criados. Esse o desafio do modernismo: avançar sem perder em peso e em profundidade ao se libertar dos vínculos do passado, pois só haverá liberdade se forem mantidos esses laços que unem as liberdades do passado e os modernos do presente.

Marivone Cechett Sirtoli




Um comentário:

Unknown disse...

Leitura realizada e logo farei postagem com comentários.