segunda-feira, 1 de dezembro de 2008

A poesia de Bonvicino e os seus restos

Rotina

Um mendigo

ao revirar

uma lata de lixo

arrancou o pino

de uma granada

que decepou seu braço

os estilhaços perfuraram

seu olho esquerdo

e destroçaram seus lábios

e dentes, um vira-lata

morreu na hora

Gostava

da vida despedaçada

que o acolhia -

em sua explosiva rotina

.



Viva, em vermelho vivo

no muro

dois mendigos

largados na calçada

dormindo

indiferentes aos carros que passam

e ao alívio

da brisa

que atenua o calor de dezembro

um vira-lata dorme também

tranqüilo

(BONVICINO, Régis. Página órfã. p.63)



Bonvicino no poema Rotina trata, como o próprio título mostra, do cotidiano dos moradores de rua, dos mendigos que estão no mesmo nível dos vira-latas, o homem tratado e colocado no mesmo patamar dos ..."que limpian con la lengua".
Os mendigos, assim como os vira-latas, vivem dos restos, do lixo e das sobras da vida dos outros, os que realmente vivem. Restos que servem para manter a sobrevivência e constituem uma forma de vida frágil, instável e que pode ruir totalmente a qualquer momento. O poeta apresenta um sujeito que tem a sua vida decepada, destroçada e perfurada a cada dia. Para esse homem, o novo dia não é diferente do anterior e também não é diferente do que virá. Uma rotina de mal viver, um eterno viver à margem expresso pela falta de expectativa, pela falta de "ser", pela falta de mudanças e pela estagnação.
A vida, aos poucos despedaçada, irá culminar com a morte, que também não se mostra como sendo algo fora da rotina dessas pessoas, é um fato esperado, indiferente e gradual: morrem um pouco a cada dia. A agressividade desse mundo é representada no poema pela explosão de uma granada, mas a cena, o impacto dos ferimentos e sua intensidade iguala-se a agressividade de viver no mundo moderno.
A indiferença é uma constante nesse mundo urbano, repleto de novas tecnologias, que produz em velocidade assustadora mais e mais contrastes, segrega seres humanos e os reduz a animais. Diante da inevitabilidade e da impotência diante disso tudo, esse homem que dorme na calçada mostra-se indiferente, inatingível. Mas, a qualquer momento, essa tranqüilidade pode ser abalada, uma explosão que faz ceder todas as estruturas. A idéia de Berman, em Tudo que é sólido se desmancha no ar, mostra-nos que a devastação atinge em cheio o homem e sua integridade é permanentemente colocada em segundo plano. Somos empurrados para fora como restos, como lixo, substituídos pelo novo e pelo moderno, empurrados para a Rotina de um mundo que se desestrutura e engole, tolera conviver com essa gente, desde que fique fora do caminho.

Maristela Losekann

Um comentário:

Unknown disse...

A leitura de teu texto foi realizada. Em breve faço postagem com comentários.