domingo, 16 de novembro de 2008

Manoel de Barros



Pretexto

Nesta abertura instigante e paradoxal, que é uma pré-apresentação do que virá em seguida, o poeta explica o que o nada é para Flaubert com o intuito de sinalizar ao seu leitor que não se deixe enredar por esta armadilha de considerar o nada que não tem quase tema, que se sustenta só no estilo que é o nada de Flaubert, com o nada que ele, Manoel de Barros persegue e que é coisa nenhuma por escrito, é usar as palavras para fazer brinquedos e coisas desúteis: “O nada mesmo. Tudo que use o abandono por dentro e por fora”.
Precisamos ter consciência que o terreno que estamos pisando é o da poesia, em que o eu lírico organiza de modo muito especial os signos, subvertendo os elementos lingüísticos, isto é, um terreno de transgressão verbal e sem limites. Manoel de Barros se apropria desta subversão e vai além, não se contentando com o signo meramente representativo para materializar o nada por meio da linguagem, e o alarme, para ele, pode significar a existência da palavra contrapondo o silêncio – silêncio aqui como significado de ausência desta palavra – como a palavra que não foi dita.
[...] É coisa nenhuma por escrito: um alarme para o silêncio, um abridor de amanhecer, pessoa apropriada para pedras, o parafuso de veludo, [...].
Lúcia Castello Branco, na apresentação do livro, nos alerta sobre as epígrafes, as citações, as referências, as notas de rodapé com que o eu lírico nos oferece pistas, mas que, segundo ela, são falsas pistas que se seguidas nos levarão ao movimento de uma segunda mão, “que escreve nos espaços paratextuais, o desnome desse sujeito poético desacontecido”. O uso que o poeta se vale deste prefixo des é constante e caracteriza o paradoxo ilógico em que sabemos, está o seu nada que é tudo, como podem atestar os dois primeiros versos do livro após o Pretexto: “As coisas tinham para nós uma desutilidade poética. Nos fundos do quintal era muito riquíssimo o nosso dessaber”.

Desejar ser
O maior apetite do homem é
desejar ser. Se os olhos vêem
com amor o que não é, tem ser.
Padre Antônio Vieira
em PAIXÕES HUMANAS

1.
Com pedaços de mim eu monto um ser atônito.

6.
Carrego meus primórdios num andor.
Minha voz tem um vício de fontes.
Eu queria avançar para o começo.
Chegar ao criançamento das palavras.
Lá onde elas ainda urinam na perna.
Antes mesmo que sejam modeladas pelas mãos.
Quando a criança garatuja o verbo para falar o que
não tem.
Pegar no estame do som.
Ser a voz de um lagarto escurecido.
Abrir um descortínio para o arcano.



ANÁLISE

O maior apetite do homem é
desejar ser. Se os olhos vêem
com amor o que não é, tem ser.
Padre Antônio Vieira
em PAIXÕES HUMANAS

Com esta epígrafe, o poeta nos apresenta o homem como alguém capaz de enxergar, não o que ele é, mas o que ele não é, indo além das suas necessidades físicas. Para isso, o seu olhar tem que ser um olhar com amor o que ele não é, ou seja, travestido de poética, pois a poesia é exatamente e até onde ela consegue não ser – fundamento este que marca o signo poético e o traveste de profunda humanidade – assim, o poeta considera que o homem é poesia, ou que a poesia é propriamente humana.

1.
Com pedaços de mim eu monto um ser atônito.
O que indica, entre outras leituras, uma possível experimentação da perplexidade, do espanto, daquilo capaz de nos deixar atônitos. É uma advertência, uma informação que devemos levar até o fim deste tópico.

6.
Carrego meus primórdios num andor.
(Faz referência a era da não representação)
Minha voz tem um vício de fontes.
(O eu poético queria ter a possibilidade de se expressar através dos sentidos)
Eu queria avançar para o começo.
(Voltar ao princípio – aos primórdios - seria avançar, aproximar-se da palavra pura)
Chegar ao criançamento das palavras.
Lá onde elas ainda urinam na perna.
(A infância para M. de Barros tem um sentido de inocência, de busca pela palavra - eis o ponto máximo da relação com o universo infantil: a criança é incapaz de entender as palavras como representações do mundo, daí sua facilidade em delas fazer “brinquedos”)
Antes mesmo que sejam modeladas pelas mãos.
(Antes que a palavra seja vinculada à representação, um tempo pré-significante. Era um tempo inequívoco e natural)
Quando a criança garatuja o verbo para falar o que
não tem.
Pegar no estame do som.
Ser a voz de um lagarto escurecido.
Abrir um descortínio para o arcano.
(É o retorno às origens, novamente o reencontro com o universo infantil ou mesmo dos homens primitivos. A eterna busca do poeta marcada pela impossibilidade de conciliação entre a palavra e o nada que ele quer dizer. Isso seria uma irrealização, mas o poeta nos abre uma brecha onde mostra o que não se representa através do olhar amoroso dirigido ao não-ser, como queria Vieira)

***

14.
O que não sei fazer desmancho em frases

Eu fiz o nada aparecer

(Represente que o homem é um poço escuro
Aqui de cima não se vê nada
Mas quando se chega ao fundo do poço já se pode ver
o nada)

Perder o nada é um empobrecimento.

BARROS, Manoel de. Livro sobre Nada. Rio de Janeiro: Record, 1996. p.63.

(...) Percebo agora que eu escrevo sobre nada. De onde vem o que não sabemos? Porque no fundo nunca sabemos nada. E assim continuamos. E, de fato, nunca nos faz falta o quê não sabemos. Vivemos sem nada a vida toda e o que temos é parcela do nada. Não sei exatamente porque escrevo sobre isso. Talvez eu esteja escrevendo sobre o nada. E o nada é o sentido não declarado das coisas. Eu sei escrever apenas brigando com o sentido claro. Mas, ao mesmo tempo, o que mais tenho procurado é fazer da letra um lugar sem fronteiras. O sentido é aprisionado não por mim. Omitir o sentido claro das coisas não é tirar o sentido das coisas. É dar a elas outro sentido: de luta, de intempérie. E sempre foi assim que escrevi. Brigando não com as pessoas, os sentimentos, a vida. Mas com o sentido claro das coisas. Não se trata de mistério, mas de mim deslocada da necessidade de ser entendida. (...)


(E talvez seja essa a imensidão íntima dita por Bachelard no meu entendimento. É o nada desmembrado em frases sem afrouxar os laços com a imensidão do ser).

Contribuições teóricas acerca do Nada que podem ou não contribuir ao entendimento do Nada que existe em nós

Sartre
“Concluímos então que, se a negação não existisse, nenhuma pergunta poderia ser formulada, sequer, em particular, a do ser. Mas essa negação, vista mais de perto, remeteu-nos ao Nada como sua origem e fundamento: para que haja negação no mundo e, por conseguinte, possamos interrogar sobre o Ser, é necessário que o Nada se dê de alguma maneira” (In: O ser e o nada”, p 64).

Camus
“Entre a certeza que tenho da minha existência e o conteúdo que tento dar a essa segurança, o fosso jamais será preenchido. Serei para sempre um estranho em mim mesmo” (In: Mito de Sísifo, 1989:38). “O fracasso, além de toda explicação e de toda interpretação possível, não nos mostra o nada, mas o ser da transcendência (...) Nada, nesse raciocínio, nos leva à lógica” (idem, 1989:51).

(Camila e Marivone)

Um comentário:

Unknown disse...

A análise apresentada está coerente com a proposta da obra. A pertinência também se nota se considerados os estudos e discussões a cerca da produção do poeta.