domingo, 7 de setembro de 2008

Arte ou Autor?

A 6º Bienal do Mercosul pode estabelecer um complexo sistema de linguagens que se intercambia entre obra e visitante. Em múltiplos idiomas (ainda não dicionarizados, pois utilizam aparelhos sensoriais diversos) a comunicação entre o público (inclui-se, aqui, os mediadores) e a mostra de Arte se transforma em processo de significação ou até de recriação das intenções discursivas determinadas pela seleção curatorial. Portanto, é preciso deixar que cada ponto de vista crie o objeto ao invés de tencionar as linguagens a um entendimento comum e ideal.

Trem, trilhos, trilhas. Caos, som, imagem. Cruza os braços, apóia-se no parapeito: paisagem de frente. Armazéns enfileirados e geometrizados: encoste-se. As tardes findando podem deixar-te mais próximo do cotidiano desterritorializado. Configura a terceira margem entre a cidade e o Guaíba. Inclina o pescoço no esforço de ver as paredes invertidas, não em linhas, mas em ondas. Adentra no espaço e sofre um estilhaço de caos, som, imagem – linguagem. Carrega tua bússola esquizofrênica e fala.

Luiz Camnitzer cria estações pedagógicas não mecanizadas para que os visitantes da 6º Bienal possam deixar escritas suas impressões de cada espaço, pois, comparada com as novas tecnologias de aquisição do conhecimento, a cidade letrada pode desencadear menor índice de exclusão. Outros que passarem por essa esquina estarão convidados a compartilhar os olhares e, quem sabe, encontrar correspondências com os que obtiveram. Dario Robleto (1), em um desses centros de trocas espontâneas, mas não menos analíticas, diz que “o potencial artístico para mudar o mundo deveria estar disponível a todos (...) potencializados pela metáfora, a arte pode operar um re-encantamento do mundo cotidiano”. É na potencialização de cada voz desse coro dissonante que é possível construir um diálogo que, certamente, será estendido às redes sociais onde cada indivíduo construirá uma narrativa. Os papéis sociais estão dispostos a subir ao palco o qual se faz cada vez mais de um conjunto de símbolos audiovisuais não só explorados pelos meios midiáticos, mas também pela Grande Arte.

Como olho apreende mais depressa do que a mão desenha, o processo de reprodução das imagens experimentou tal aceleração que começou a situar-se no mesmo nível que a palavra oral. Se o jornal ilustrado estava contido virtualmente na litografia, o cinema falado estava contido virtualmente na fotografia. A reprodução técnica do som iniciou-se no fim do século passado. Com ela, a reprodução técnica atingiu tal padrão de qualidade que ela não somente podia transformar em seus objetos a totalidade das obras de arte tradicionais, submetendo-as a transformações profundas, como profundas, como conquistar para si um lugar próprio entre os procedimentos artísticos (2).

Mais do que a difusão de espaços gratuitos e abertos todos os dias da semana, é preciso que o visitante esteja consciente da ação autoral não arbitrária que transpassa qualquer seleção, trânsito ou metáfora. Assim como o visitante é capaz de trocar os imãs da bússola e fazer que a ordem expositiva das idéias seja invertida.

Procura-se, em síntese, esclarecer a visão da Arte, aqui exposta, é compreendida na linguagem, no discurso, no texto, na palavra. Em cada uma dessas instâncias estão contidos fatores exteriores de valoração que por vezes apenas circundam o objeto artístico, pois anteriormente há a prática, o processo que indica uma não-neutralidade da Arte. Por conseguinte, a postura do visitante modifica-se de acordo com o registro autoral que se mostra imponente, mesmo que Clarice Lispector nos diga que “o verdadeiro pensamento parece sem autor” (3). Mas, não estaria ela falseando a verdade na ironia da inspiração literária sobrenatural? Pois bem, Robleto nos questiona sobre os limites da arte quando o que foi selecionado para essa exposição são trechos de textos e, por assim dizer, códigos, manchas, traços, cores visualizadas somente pelo leitor, pois código apesar de manipulável possui sentido suspenso. O artista deixa escancarado que toda obra é código, que ora está aprisionado pelo assujeitamento ora é convite para o abuso de seus significados. Basta que ao leitor esteja permitido o poder da criação na sua verrosimilhança interna aos estatutos que apontam à Arte. E essa permissão nem sempre é concedida.

1. Artista da mostra Zona Franca sob a curadoria de Gabriel Perez-Barreiro.

2. BENJAMIM, Walter. A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica. In: Magia e técnica, arte e poética. 4ed. São Paulo, Brasiliense, 1985.

3. In: Água Viva. São Paulo, Artenova, 1973, p. 108.

(Dario Robleto, EUA, 1972 Oh, those Mirrors with Memory, 1997)

Texto da imagem: Sairemos à Luz Dançando (Trinta e seis lâmpadas de 120 watts, vizinhança). No transcurso de um mês, sem que me vissem, troquei as lâmpadas das varandas das casas da quadra onde eu cresci por outras mais potentes, fazendo com que, à noite, a quadra inteira ficasse significativamente mais brilhante. dimensões variáveis. 1997.
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Tenho o costume de começar a escrever iniciando o período por “e” porque tenho estado tão dolorida pelo estado interminável das cousas. Lembro de Pessoa com carinho como se ele fosse meu querido. Ele é também tão feito de incansáveis tentativas de se tornar alguém de respeito e passível de ser amado. E Nietzsche diz que a maior prepotência do ser humano é exigir amor. Continuo acreditando no “nosso poetinha” quando diz que o maior bem é dar amor e receber amor. Isso que escrevo não possui nenhuma pretensão de ser literário (quando há tanto para se questionar sobre isso), aliás, essas citações me causam um mal estar literário-acadêmico. O pragmatismo nada me despertara até então. Sou tão despercebida quanto à cor dos olhos das pessoas até aos new top-tens do globo. Porque tudo se faz imediato hoje que as necessidades mais basilares do homem e da mulher se mostram despercebidas. E antes que acreditava numa literatura não ideológica eu podia escrever algumas sensações tolas em diegeses tolas numa manhã de domingo. Agora que as palavras representam instâncias da persuasão do poder letrado até minha dor fica envergonhada em ser apenas dor. Sentir-me dolorida e continuar escrevendo dessa maneira? Preciso (logo) encontrar um novo fio de letra e sentimento para permanecer escrevendo. E que faça meu subjetivismo se perder tão profundo em mim que eu possa ser pedra.

(Tal desassossego não se repetirá aqui ou não)

Poesia é o que há de mais cru em mim.

Camila Alexandrini

3 comentários:

Unknown disse...

Camila:
O texto me gerou questionamentos para os quais não sei as respostas; se é que as elocubrações podem ser assim consideradas. Mas vamos a eles: a arte contemporânea (e penso especificamente nas instalações da Bienal referida) exige das pessoas interações diversas com o propósito de gerar uma ligação entre a obra e o visitante. Que a obra de arte necessita da interação do outro é inevitável, mas será que esse visitante tem consciência da sua importância para que a obra se revele? O fato de solicitar a interação física do outro (ouvir um som, escrever, tocar, ...) não sugere que a arte contemporânea está tentando resgatar uma conotação lúdica que ficou perdida? Ou ainda, está tentando mostrar que a arte não é 'coisa' para iniciados e que os 'leigos' também podem participar do fazer/prazer(?) artístico?

Conspirações Acerca de Uma Tal Poesia disse...

"...se é que as elocubrações podem ser assim consideradas". Quais? As que foram levantadas no meu texto?

Unknown disse...

As elucubrações a que me refiro são as minhas e que foram sucitadas pelo teu texto. Ou seja, teu texto me gerou reflexões que não sabia se eram apenas devaneios que tive ou se efetivamente poderiam (como tentei fazer) ser organizadas de forma menos caótica.